terça-feira, 22 de outubro de 2013

Vinicius de Moraes - 100 anos

A CIDADE ANTIGA

Rio de Janeiro , 2004

Houve tempo em que a cidade tinha pêlo na axila 
E em que os parques usavam cinto de castidade 
As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto 
Com a posterior invenção dos kamikazes 
De resto, a metrópole era inexpugnável 
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara. 

Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA 
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata! 
Vogais! tônico para o cabelo da poesia 
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada 
Entre os minuetos sutis do comércio imediato 
As portadoras de êxtase e de permanganato! 

Houve um tempo em que um morro era apenas um morro 
E não um camelô de colete brilhante 
Piscando intermitente o grito de socorro 
Da livre concorrência: um pequeno gigante 
Que nunca se curvava, ou somente nos dias 
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias. 

Houve tempo em que se exclamava: Asfalto! 
Em que se comentava: Verso livre! com receio... 
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto: 
"Então às seis, sob a marquise do Passeio..." 
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral 
Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal 

Houve tempo em que o amor era melancolia 
E a tuberculose se chamava consumpção 
De geométrico na cidade só existia 
A palamenta dos ioles, de manhã... 
Mas em compensação, que abundância de tudo! 
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo! 

Houve tempo em que apareceu diante do espelho 
A flapper cheia de it, a esfuziante miss 
A boca em coração, a saia acima do joelho 
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris 
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita! 
Que vos transformastes em dízima infinita... 

Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo 
Tempo para a peteca e tempo para o soneto 
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo 
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto... 
Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima 
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.